quarta-feira, 28 de abril de 2010

A enfermeira

Internada num hospital, Celestina, moribunda, implorou que a levassem para longe dali, queria seus últimos dias junto dos familiares. Tinha talvez um mês de vida.
— O possível foi feito. Só resta esperar. O que tem a fazer é dar-lhe o máximo de conforto. Os últimos dias serão difíceis. Muitas dores...
— Mas doutor, não seria melhor que ela ficasse aqui?
— Não. O melhor é fazer tudo o que ela quer.
— Um mês, doutor?
— Pode ser mais, pode ser menos...
— Menos?
— Tem que se acostumar com a idéia, senhor Antônio, infelizmente...
O senhor Antônio lamentava e sofria a morte próxima da esposa. Relembrava, de pé, no corredor do hospital, o dia em que a conhecera. Chovia forte e Celestina tentava, em vão, abrir o guarda-chuva. A observava de longe, do outro lado da rua. Na verdade, daquela distância não dava pra ver a estampa da futura esposa do senhor Antônio. Estava escuro. Sem demora, ele a socorreu. Mas não foi o suficiente para uma pneumonia se instalar em seu frágil par de pulmões. Desde lá a saúde dela nunca mais fora a mesma.
Em pouco tempo estava amarrado à Celestina. Dos vinte anos de união, conta-se seis filhos: Célio, Celso, Celeste, Antônio, Antônia e Gorete. Esta última é outra história. Quase se separaram por causa dela. Nenhuma combinação de nome os agradava. Como seria a última, queriam que tivesse o nome dos dois. Sem chegar em um acordo, foi dado este. Depois da Gorete nunca mais deixaram de brigar, porque quem escolheu foi ele. Antônio sugeriu:
— Que tal Gorete!
E foi com muito entusiasmo. Nem no dia do casamento vira tanto brilho no olhar do senhor Antônio. Desde então, sempre quando discutiam, jogava-lhe na cara:
— E a Gorete, tem visto?
Senhor Antônio não podia se atrasar para o jantar que logo ouvia:
— Estava com a Gorete?
Não adiantava argumentar. Antônio carregava a cruz pelo batismo da caçula.
Celestina não deixava de ter razão. Soubera de um namorico do marido com uma tal de Gorete, lá do Manauense. Mas ele negava. Até jurava. Dona Celestina sempre sofreu por causa disso, e a única Gorete que tolerava era a filha. Sempre na entrevista para contratação de empregada, iniciava com a afirmativa interrogativa:
— Seu nome não é Gorete não. Ou é?
Agora, Celestina, coitada, vê-se impotente numa cama de hospital, pedindo que a levem para casa, e possa morrer em paz. Tudo porque a enfermeira se chama Gorete.



Caos

Nove horas da manhã. As crianças brincam no quintal enquanto a vovó faz o lanche. Um silêncio mortal toma conta da casa; não se ouve mais a algazarra da meninada cujo barulho diluíra-se no ar, assim como o cheiro das guloseimas que a vovó preparara.
Cinco, dez, cinqüenta minutos e nada. Não se ouve, não se fala, não se vê. O caos se instalou na Terra. Pessoas paralisadas por toda parte. Todos os seres, inclusive os micros, estão inertes.
O gondoleiro segura insensível seu remo nas águas românticas de Veneza; o pássaro suspenso no ar não entoa canto nenhum, nem o cantor; o homem que impunha a faca contra seu semelhante pára, mas sua cara de fúria não cessa; aviões barcos trens, camelos cavalos cães, as flores as palmeiras as urtigas também não manifestam vida. O caos só não continua porque o tempo parou, porém a mente não, então ele permanece.
Homens trabalham em si mesmos. Refletem sobre a guerra, a fome, a morte, a vida... Alguns aprendem a rezar, outros tentam chorar pelo que foram, outros pelo que queriam ser, outros ainda, pela fortuna, agora sem serventia; crianças não morrem, todavia não nascem; matar não mais, morrem em si mesmos. Morte não há, porém vida também.
Cérebros a mil buscam resposta. Não há!
Será Deus irritado? Pensa o muçulmano, congelado de arma em punho. Sobre o mesmo reflete o filosofo ateu, o sacerdote, o bandido no morro, o político corrupto, a prostituta, e a mulher honesta também. Não se sabe a resposta. A internet parou. A potencia é agora impotente. O cientista jamais descansa, já que a sua mente trabalha em busca do último elemento que o fará eterno.
A criança, agora sem futuro, quer a mãe. Sabe Deus por onde anda; tudo o que o pai queria era o aconchego do lar, junto da família. Não há possibilidade! O que se aprendeu ou construiu continuam inteiros, porém destruídos. Só os poemas servem de deleite, pois falam por si, a vida brota deles. Sorte de quem os leu um dia e a mente os guardou para serem vividos no momento do caos. Só o abstrato sobrevive.
O marido ama e deseja com a mesma intensidade sua esposa; o viciado pena em sua prisão; o moribundo o será para sempre, pois não morrerá; a criança ao nascer ficará eternamente em seu primeiro choro, segura pelas mãos do médico, de ponta cabeça, enquanto a mãe, congela a lágrima e a emoção daquele momento; os meninos etíopes não mais sucumbirão à fome, porém não deixarão de senti-la; o magnata continuará exalando perfume francês, mas ele nem ninguém o sentirão, tampouco comerá nas orgias banquetes oferecidos pelos bajuladores, cujo intuito é a conspiração; nenhum chefe de Estado perderá seu poder, porém ninguém o ouvirá e obedecerá. Feliz do cadáver que não pensa. Se é que não!
Todos estão presos em sua própria história, em sua prisão, invisível. Entretanto, foi permitido que todos, todos lembrassem de suas vidas, inteiramente. As dores e os amores. Sentir como realmente seria viver individualmente.
São nove horas e um milésimo de segundo. Um milésimo de segundo foi o tempo que tudo isso durou. Como seria na eternidade?
A vida retoma seu curso. Feliz, a vovó serve seus netinhos, ofegantes e famintos, loucos por doces e brincadeiras.


Pintura urbana

Tarde. Cinco e meia. Trânsito parado. Motoristas impacientes. Passageiros irritados. Calor infernal. Buzinas estridentes. Somente as descargas dos automóveis cumprem o seu papel. Desnecessário abrir e fechar de sinal. Silvos distantes ouvia-se. Nenhum movimento; apenas o tremular dos carros. Xingamentos por toda parte. No coletivo, era a mãe do motorista a destinatária. Gestos obscenos completavam a pintura estressante, urbana. Suores misturavam-se a gases vindos de fora e de dentro dos veículos. Alguns se abanavam. Palitos de picolés e cascas de ice Kiss e freegells voavam pelas janelas. Havia espaço para os bem-humorados; uma piada arrancava risos tímidos. Era só um começar. Lá fora, os meninos sujos e despenteados aproveitavam. Água, sabão, rodo e molambo. Frenéticos a lavar pára-brisas. Nem pediam permissão, porque, na maioria das vezes, era negada. Os mais apiedados davam-lhe moedas.
Dentro dos carros, cigarros e celulares disputavam a vez; uns aproveitavam para fazer a higiene nasal; retocar o batom. Sempre havia a possibilidade, em meio àquela situação, de se conhecer o homem ou a mulher da vida de alguém.
Ouvia-se agora a sirene ensurdecedora. Passava pelo acostamento praticamente obstruído. O destino, três quilômetros à frente, talvez. Não dava pra saber exatamente, mas havia vítima... Vítimas, pois foram duas, anunciando desgraça. Mesmo sabendo de uma possível fatalidade, ninguém se solidarizava. Traziam apenas a curiosidade aguçada. Mais um motivo para quererem chegar rápido. Era excitante poder ver as vítimas estendidas ao chão, absorvendo o mormaço do verão de oeste avermelhado; ver os paramédicos em ação, como numa cena de filme; o local sendo periciado; a marca de giz no asfalto.
Uma leve tristeza passageira; só para manter a remota lembrança de humanidade. Porque cada um dos passageiros não tinha para dar mais de um minuto de seus sentimentos.
O julgamento era feito ali mesmo. Especulava-se a distância. Uns, definitivamente, apontavam a imprudência dos envolvidos; mesmo sem saber a natureza do acidente, se é que houve um; alguns defendiam os pedestres; outros os responsabilizavam em cinqüenta por cento, sendo vinte e cinco do motorista e a última quarta parte do governo, que não investia.
Mais adiante, a decepção. Apenas um carro enguiçado atrapalhava o trânsito. Não se conformavam. Perder todo aquele tempo por causa de um fusca. E as teses levantadas? A busca de um culpado? Tudo foi por água abaixo. A decepção tomou conta das pessoas acostumadas àquele ritmo. Cotidiano.
Chegaram em casa sem nada pra contar. Mas ainda esperançosos, aguardavam o noticiário das oito. Restava saber o destino das ambulâncias.

Poucas palavras

Eles se conheceram na repartição. Ambos bem sucedidos, independentes. Solteiros. Filhos tinham os dois. Um cada um. Ela, espirituosa, bela mulher, 32 anos. Ele, tímido, introspectivo. Mais jovem. Falavam-se menos do que desejavam. Eram de departamentos diferentes e signos também. Bom dia, boa tarde nos corredores. Era só. Foi assim por seis meses. Até a primeira confraternização.

Entreolharam-se muitas vezes. A distância, sinalizaram um encontro para mais tarde, longe de todos. Não esperaram. Alguns drinks e pareciam outros. Finalmente aproximou-se. Um convite. Tomou-a pela mão, pondo seu copo sobre a mesa dos coquetéis. Dançaram. Saíram à francesa.

― Táxi!

― À esquerda, por favor!

― Noite quente!

― Oh!

― Direita!

― Música?

― Não.

― Chegamos. Quanto?

― 20.

― Obrigado.

Que perfume! Pensou ele sem nada dizer. No apartamento, serviu a ela mais uma bebida. E mais algumas. Ela o despiu e mordeu sua orelha. Sussurrou algo que não consegui ouvir. Ele riu. Em resposta a beijou, bem. Ela gostou, ele também. O resto não vi, mas imagino.

― Táxi!

Na segunda, olharam-se. O sorriso ainda durava. Apenas bom dia e boa tarde. Ansiavam pela próxima festinha.

Brasileirice

Olho pra trás, percebo mudanças quase nenhuma.

― O que é isso companheira? ― ouço ao pé do ouvido, de alguém que lembra Guevara.

― Há revolução. - disse-me.

― Mudanças poucas. Pus-me a desfiar. Dessas, o perfil de “Che”, às vezes ao vento, sobre a motocicleta, sempre de boina de estrela solitária, estampado em malha de grife pra burguês comprar, customizada, superfaturada, no shopping. Shopping leva aspas pra indicar estrangeirismo? Não importa. Não há brasileiro que resista a um, e além do mais a Língua Portuguesa já o engoliu mesmo! E por nisso falar, quantos sapos temos que engolir ao dia? É que engolir sapos faz mal, melhor mastigá-los antes. Autonutrição também pode prejudicar a saúde, então é bom consultar um médico. Chegar numa dessas casinhas de “saúde”. Acontece que eles estão na vasta lista dos desaparecidos; vez em quando vejo um, no poste, desbotado pela ação do sol e da chuva - casamento de viúva. E eu não casei nem a primeira vez ainda. O quê que a viúva tem que eu não tenho? Falando em tempo: os meteorologistas anunciam mudanças bruscas no clima; fortes ventos e tempestades devastadoras. É o efeito estufa. É bom Noé pôr as barbas de molho. Não é? Não lembro se ele tinha barba. Por via das dúvidas é melhor deixar crescer. E se fosse preciso uma nova arca, será que o Brasil teria alguma chance de levar alguns. A Xuxa, o Pelé, alguns monstros da televisão. Ai que medo! Fernanda Montenegro, talvez, mas o Fernando, o marido, não; nem os ex, presidentes, Collor e Henrique; talvez o partido da vez, o PT... Por falar em PT, nunca mais vi. Se tiver notícias mande pro meu endereço eletrônico, ou e-mai”, se assim desejar. Recebi um, semana passada. Fiquei chocada – não que possua gene galináceo. Ao fazer o download apareceu a fotografia de um homem com suas vergonhas de fora; sua pele não era parda, nem seus cabelos tosquiados, mas tinha boa figura, bom nariz e boa vergonha e cabeça chata. Eu vi que ali, se chegando, rolava. E como rolava! Havia uma frase escrita bem no rodapé: made in Ceará. Foi no dia em que estava triste e deprimida porque meu plano de carreira nunca me alcançaria, amputaram-lhe as pernas quando aprovado, à revelia, então quis renovar amizades, espairecer; foi quando conheci Man, pela internet, um cearense com jeitão de striper. Juro que só pensei na amizade, mas depois que vi suas vergonhas... A princípio corei, com vergonha; não mais quando soube que minha carreira “magistérica” havia acabado de falecer. Não havia mais do que se envergonhar. Eu era apenas uma letra e um número numa tabela mal-feita, subfaturada. Lembrei de minha infância, tenra infância, quando pulava amarelinha – feito Saci - tentando me equilibrar naqueles quadradinhos pra alcançar o céu. É assim que me imagino, tendo de me equilibrar, de três em três anos, pra pular no quadradinho seguinte da amarelinha escolhida por mim. “O céu é o limite” – nunca ninguém voltou pra confirmar - mas é bom aproveitar o purgatório porque o céu é distante, e o diabo do caixa eletrônico só vive lotado e com limite de saque. Pra quê limite? Mas não é tão ruim assim o meio do caminho; existem as pedras que temos de acertar antes de pular, e se a gente encontra um Man pelo caminho... Largo, se for uma avenida; mas se for rua de invasão é bem estreito. Nesse caso contrarie as leis de Deus, ao caminhar escolha o mais largo, é menos perigoso. As feras humanas ficam a espreita nos becos e vielas, aguardando sua presa. Enquanto isso, pulando vou, amarelinha e desnutrida. Mas os meus cabelos, ainda não os alisei. São encaracolados e rebeldes, indomáveis como o meu espírito. Sigo numa sala quadrada, de 6x8, às vezes menor, com carteiras azuis, mesinha quebrada, apagador velho, pincel roto, paredes pichadas, engolindo sapos, de todo tamanho, e um sonho, de padaria, daqueles bem grandes. O bom é que às vezes, próximo ao final do mês, junto-me aos iguais e vou tomar um chope enquanto a cirrose não vem; enquanto o céu não chega... enquanto não vem o último suspiro. Mmmm, que delícia, adoro suspiro!

Sete Anos

Ivone casou. Cometeu o primeiro grande erro de sua vida. Não o de casar, mas o de ir morar com a sogra.

Isso, todos sabem que é marcar data do divórcio. Mas o Abílio quis.

― Só até o apartamento ficar pronto, benzinho!

Ela não queria, e sabia aonde isso daria. Profetizava ao marido o destino que os aguardava.

Passaram-se três meses. Seis meses e nada. Nenhuma desavença. Uma briguinha sequer. Ivone estava decepcionada. Preparara o espírito para viver um inferno. Ao contrário, vivia um mar-de-rosas. A sogra só opinava quando solicitada. Aconselhava bem. Ajudava nas tarefas domésticas, e sempre a última palavra era da Ivone. Enquanto as amigas falavam mal das sogras, Ivone elogiava a sua. Puxava por um defeito ou mal-feito, mas nada, nada lhe vinha à memória. Ivone tinha a sogra perfeita.

Abílio há algum tempo notara a dedicação mútua. Tratavam-se, agora, minha sogrinha e minha norinha.

― Benzinho, vem deitar!

― Já vou, amor. É só o tempo de terminar a leitura pra minha sogrinha!

A cumplicidade entre as duas se fortalecia a cada dia. Abílio sentia-se esquecido. No canto. Triste. Foi definhando, definhando. Não deu outra. Caiu doente.

Cuidavam as duas do Abílio. Os mimos vinham em dobro. Sentia-se prestigiado. Aquela cama de hospital não parecia tão ruim. Tinha as duas mulheres de sua vida ali, a velar-lhe o sono, a fazer-lhe agrados. Porém, tão logo passasse a enfermidade, e uma vez curado, seria novamente indiferente. Cuidou de apressar a obra.
O apartamento ficou pronto. Pouco antes dos sete anos. Marcaram o dia da mudança. Ivone, porém, nada disse à sogra para não magoá-la. Falaria um dia antes.

Na véspera.

― Acode aqui, Abílio! - Aflita, Ivone segurava a sogra nos braços.

― O que houve?

― Acho que...

― Não! Vou chamar a ambulância...

― Não adianta mais...

A sogra da Ivone havia morrido. Sem deixar um ai de desapontamento. Não digo que Abílio desejara a morte da mãe, mas sentia-se estranhamente aliviado. Ivone, por sua vez, permanecia inconformada. Com certeza, sogra igual não veria jamais. Preferiria mil vezes uma sogra comum, que se acha em qualquer esquina, assim, talvez a trouxesse ainda viva, porque dizem: “vaso ruim não quebra”. A sogra da Ivone era definitivamente um vaso bom.

Com a separação, Ivone preferiu ficar. Abílio foi morar no apartamento. Não superaram a crise dos sete.

― Bem que a Ivone me avisou!