domingo, 16 de maio de 2010

O Homem é da terra e a terra é do homem

Ao nascido em terras nordestinas, dever-se-ia anexar à certidão um manual de sobrevivência. Pode nem nascer! Se nasce e passa sete dias, há de vingar ― desse mal a danada não leva.

É de risco também a criancice do nascido por essas bandas. Corre ainda perigo pela coqueluche, acidente na cacimba e mais a fome... A fome é de toda vida.

Passado os sete, o menino sempre vinga. E se bota pra estudar já tarde. Inteligência tem muita, mas o corpo é apequenado e a cabeça desacostumada. Não aguentam tanta regra de português e vocábulo sem serventia (chocolate, computador, maçã, pera, vídeo-game, luxo, cama...), nem tantos sinais, aritmética e a enxada juntos. A cabeça vazia já é peso. Cheia de pensamento então?

A gente nascida da aridez - por saber que não tem - já não precisa muita coisa não: a reza, que alimenta o espírito e faz crescer o roçado; desfiar o terço como um exercício pra depois debulhar o milho e o feijão abençoados, recompensa pela fé e devoção; uma cantiga pra virgem em agradecimento à vida, que é longa, tão enormemente proporcional à vontade de vivê-la.

Mas pro menino crescido dessas bandas é bom que se saiba rir e rimar, porque a cacimba seca, o riacho seca e a distante água azul não rega.

O homem labutador daqui sempre tem um amor pra alimentar o coração; é que faz parecer chover sem chuva e até mostra o sorriso desfalcado que põe defeito no beiço e faz voar a farinha, quando há. O homem dessa terra passa a vida correndo atrás dela. Nas costas, a corcunda adquirida da rede, quase sempre, seu único bem até a ida.

O homem da terra de cá não dá semelhança, é ainda da casa dos trinta, mas a cara imita o solo rachado, uma ruma de linhas profundas numa geometria plana e irregular a rodear-lhe os olhos amiudados, a venta e o fosso sem dente.

Esse homem, já disse o poeta, é um forte, mas isso porque se funde à geografia numa espécie de simbiose, em que o homem é a terra e a terra é o homem. Ou seria, o homem é da terra e a terra é do homem? Não sei, só sei que sobrevivem um do outro.

Corpo Estranho

Algo indesejado quer apossar-se de você; fazer parte de sua vida. Se isso acontecer, lute. Se não der pra cortar o mal pela raiz, apare-o bem rente; não permita crescer. Combata. Peça a ajuda de um profissional, se for preciso. Mas o que é tão terrível assim?

Numa grande festa, é o anfitrião a vítima. Com ajuda de um amigo tentam identificar o inimigo e eliminá-lo.

- Esse não, o outro!

- Esse?

- Não, o da esquerda!

- Aqui?

- Aí é direita.

- Esse, então?

- Achou?

- Achei.

- Então tira.

- Não dá.

- Como não dá?

- Tá preso.

- Mexe que sai.

- Já mexi.

- Então?

- Não saiu.

- Puxa.

- Puxar?

- É. Puxar!

- Tá bom, mas vai doer!

- Então deixa.

- Vou deixar.

- Mas, e se ela reclamar?

- Tirando ou não tirando ela reclama. Então vou tirar.

- Tira!

- Perdi de novo!

- Procura.

- Esse?

- Não. O outro!

- Esse?

- Esquerda!

- Aqui?

- Eu disse direita?

- Esse, então?

- Achou?

- Achei.

- Manda ver!

- Tem certeza?

- Tenho.

- E se eu errar?

- Não erra.

- Olha que eu erro!

- Afasta os outros!

- Como?

- Com os dedos, ora!

- Já, mas agora deu pena.

- Como pena?

- É que ele ficou tão sozinho...

- Não vai chorar, vai?

- Claro que não!

- Então corta.

- Lá vai...

- Corta.

- Cortei.

- Ah, cabelinho branco!