quarta-feira, 5 de maio de 2010

Acordo de cavalheiros

― Quanto quer o senhor para assentar vinte e dois metros de chão de cerâmica, azulejar dois metros de parede e pôr uma porta no quarto de minha criança?

― É grande?

― Isso, o senhor é quem diz; já lhe dei as medidas.

― Posso ver?

― Pode.

― Tem que pôr rodapé? - disse isso com movimento de coçar o queixo com os dedos ajuntados, já com olhos diminuídos como quem calcula.

― É serviço completo. Vamos homem, diga! Faz ou não faz? Se faz diga o preço.

― Tem que começar hoje?

― Se demorar muito, anoitece.

― É 250; mas só amanhã. Tenho que me acostumar com a idéia...

― Que idéia?

― Do trabalho.

― Pensei que precisasse; o senhor, seu Manoel, tem muitos filhos e está sempre em casa...

― O que é agora, por acaso está entrando na minha particularidade? Já vou dizendo que num gosto de intimidade.

― Desculpe, é que...

― Bom, amanhã, oito horas.

Pensei, depois do acordo verbal, que pudesse me arrepender; o homem não parecia afeito ao trabalho, mas apontaram-no como bom nessa arte. No acabamento da obra não havia outro melhor. Meu próprio irmão o avalizou.

Primeiro dia compareceu. Não às oito, mas às dez. Fiquei ressabiado e pus-me a observá-lo; parecia ágil e habilidoso, cheio de minúcias. O trabalho era bom. Pedi que lhe servissem um copo de bananada; não que tivesse contratado com lanche e refeição; mas era para mantê-lo animado e continuasse bem o trabalho. Dava-lhe apenas lanche, quase sempre café, leite e pão; o almoço era por sua conta. Ao final do dia, o quarto do menino estava terminado, faltando a porta. O pedreiro saiu com promessa de dia seguinte, às oito. Garantiu. Antes pediu 50 de adiantamento. Dei-lhe porque achei justo, tinha cumprido um quinto do serviço, recebia pelo já feito.

Em segundo dia, posta a porta, saía mais cedo seu Manoel. Não pediu nenhum, apenas disse “até amanhã”, com modos de seriedade. À noite adiantada, mais ou menos às onze e meia, batiam à porta. Fui ver quem era. O próprio, pedindo mais um pouco para o remédio da menorzinha que ardia em febre. Dei-lhe 20. Não me pareceu satisfeito. Éramos dois. Em minha conta achava muito, era caso de 15, pois chegara às dez, saíra ao meio-dia, retornando às três, do almoço. Perguntei-lhe o porquê do adiantado da hora, disse-me distrair-se. Terminou o expediente às quatro e meia.

Amanhecendo, sem aviso, não comparecera ao posto. Achei que por causa da filha. Mas não, disse-me doer-lhe as juntas.

Combinamos o prazo de seis dias, com promessa de serviço terminado no sábado, e deveria eu ficar descansado. Não inspirava preocupação, pois contava ainda muito tempo para o final do prazo. Disse-me.

Era quinta, o serviço tinha um dia de atraso. Achei melhor confiar, mesmo que com péssima intuição. À hora de costume, ateu-se à instalação das cerâmicas inteiras, ficando os ajustes para o final. Era inteligente o pedreiro. E porque não dizer “artista”. Sendo rápida essa parte, dava a impressão de serviço adiantado. Ao final do dia, quase toda a sala, cozinha e quarto tinham o chão recoberto, a combinar com as paredes que mandara pintar recentemente. A casa tinha agora um ar rústico, como imaginei. Um belo desenho formara-se quando pronto o quebra-cabeça. Justapostos, linhas e desenhos em cores davam a casa bela vista.

Na sexta não viera. No sábado, disse-me ter ido buscar a mãe no porto, vinha no motor das oito. Aproveitei para puxar assunto. Perguntei de onde era. – Eirunepé. -Respondeu sem esticar a resposta. Não insisti.

O taberneiro advertira-me sobre a conduta do empregado.

― É preguiçoso. - disse-me. - Quando ganha algum, entra na toca pra hibernar, só sai quando termina o último centavo.

― O senhor não se envergonha? Deveria prestar atenção à sua própria vida.

― Só queria ajudar, mas é com o senhor. Não está mais aqui quem falou.

Estava enganado seu Antero. Dia seguinte, seu Manoel pôs-se a medir e a cortar cerâmica para os ajustes das extremidades e do rodapé. Levou o dia inteiro nisso e mais o outro. Um traço de massa, uma porção assentada. Foi assim que se deu este último dia. Tinha-lhe pago mais da metade do acertado; ora para comprar uma janta, ora o gás que faltava. Sua cara triste causava-me imenso dó. A menina, graças a Deus, não mais adoecera, aliás, a febre foi coisa pouca, garganta inflamada. Estava lá, à frente da casa, saltitante e feliz como toda criança naquela idade. Nunca a vi tão sã. Na verdade, não acreditava que alguém que mora na frente da sua casa e está lhe prestando um serviço, em acordo de confiança, tivesse má intenção, como queria que pensasse seu Antero. Afinal, eu saberia. Entre cavalheiros não é necessário papéis. Reconhecia um homem honesto quando via um.

Faltava apenas aplicar o rejunte e pôr o azulejo da pia. Seu Manoel chegara finalmente às oito. Não descrevo o alívio porque palavras não seriam suficientes. Disse que era serviço pra um dia, só iria buscar a maquita emprestada no dia anterior, mas pediu que pagasse o restante, pois deveria entregar o dinheiro a um cobrador. Era um conhecido, seu José, tinha vendido uma geladeira usada e vinha buscar o combinado. Esperava-lhe ao portão. Dei-lhe o dinheiro.

Conto-lhes apenas que trago os azulejos e o rejunte guardados no depósito. Ainda não me recuperei do golpe. Vejo-o todos os dias, e ele, indiferente, faz de conta que não me vê. Se ao menos se escondesse ou baixasse a cabeça, envergonhado. Fiquei com sua velha colher de pedreiro, o que me traz algum consolo. Pensei em devolver-lhe a ferramenta, afinal, são seis filhos e o sétimo a caminho. Não digo mais nada porque me envergonho de minha ingenuidade, mas, sem medo de errar afirmo: nem todos os pedreiros são iguais, porém, em caso de dúvida, confie mais no taberneiro do que no irmão.

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