terça-feira, 18 de maio de 2010

Paixão à primeira vista

Glória e Lívio se conheceram pela internet. Muitos encontros virtuais até a primeira vista. Foi no estádio, porque disse ela adorar futebol. Tudo mentira. Não quis arriscar perder mais um namorado. Todos eram fanáticos. Ela, por sua vez, não conseguia esconder o desinteresse, por isso sempre ficava sozinha.

Disputa entre São Raimundo e Nacional. Teve que aprender todas as regras do jogo, decorar os nomes dos jogadores, dos times mais importantes, dos campeonatos, a geografia e a geometria do campo, e as expressões usadas durante as narrações.

Combinaram ir com a blusa do time. Ele era São Raimundo. Pra mostrar sua personalidade autêntica disse ela ser Nacional “roxa”, seu time do coração. Cuidou de ir correndo comprar a blusa e acessórios numa loja do Centro. Que surpresa. Reconheceu o Lívio, ele havia ido comprar a blusa dele também. De longe observava.

― Tem a blusa do São Raimundo? – perguntou à vendedora.

― Tem sim.

― Qual é?

― Você não sabe? É essa aí do mostruário, a sua direita.

― E qual é a do Nacional?

― Essa outra, do lado.

― Ah! Quero uma.

― De qual, São Raimundo ou Nacional?

― Espera. – Lívio não lembrava de qual time gostava, aliás, de qual time havia dito que gostava. Acabou levando as duas, dizendo ser uma dele e a outra, presente.

Glória esperou que ele desaparecesse na esquina. Só então se aproximou.

― Tem a blusa do Nacional? – perguntou à vendedora.

― Tem sim.

― Qual é?

― Você não sabe? É essa aí do mostruário, a sua esquerda.

― E qual é a do São Raimundo?

― Essa outra, do lado.

― Ah! Quero uma.

― De qual, Nacional ou São Raimundo?

― Espera. – Glória também não lembrava de qual time gostava, aliás, de qual time havia dito que gostava. Acabou levando as duas, dizendo ser uma dela e a outra, presente.

― Acho que já vivi isso antes. - pensou alto, a vendedora, de mão no queixo e olhar levemente diminuído, tentando focar o close na memória.

Teclaram-se ainda muitas vezes até o encontro. Combinaram o local exato. Seria no domingo, às 16:00h. Não foi problema se reconhecerem, já haviam trocado poses. E ela já o tinha visto na loja. Ambos estranharam os trajes. Nenhum dos dois vestira a camisa. Falaram-se meio sem-graça.

― Por que não está com sua blusa? - quis saber ela.

― Você também não.

― É por causa da violência. É tão comum...

― É. Eu também.

― Vamos entrar, aí a gente troca.

Saíram dos vestiários. As blusas trocadas. Ela São Raimundo, ele, Nacional. Ambos se olharam e se riram. Ainda bem. Porque nem ela, nem ele entendiam muito de futebol. Lívio mentira porque todos os garotos de suas relações gostavam de futebol e não queria decepcionar Glória. Ele também havia estudado muito sobre o esporte. Então combinaram muito. Vibraram juntos cada lance. Atentos à narrativa torciam com tanta paixão que pareciam torcedores desde sempre. Viveram intensamente aquela final. Decisiva. Foi o marco da paixão, à primeira vista, pelo futebol. O resultado deu empate. Aquela foi a primeira de muitas partidas. No dia dos namorados deram-se camisas, aquelas, compradas para a primeira vista.

domingo, 16 de maio de 2010

O Homem é da terra e a terra é do homem

Ao nascido em terras nordestinas, dever-se-ia anexar à certidão um manual de sobrevivência. Pode nem nascer! Se nasce e passa sete dias, há de vingar ― desse mal a danada não leva.

É de risco também a criancice do nascido por essas bandas. Corre ainda perigo pela coqueluche, acidente na cacimba e mais a fome... A fome é de toda vida.

Passado os sete, o menino sempre vinga. E se bota pra estudar já tarde. Inteligência tem muita, mas o corpo é apequenado e a cabeça desacostumada. Não aguentam tanta regra de português e vocábulo sem serventia (chocolate, computador, maçã, pera, vídeo-game, luxo, cama...), nem tantos sinais, aritmética e a enxada juntos. A cabeça vazia já é peso. Cheia de pensamento então?

A gente nascida da aridez - por saber que não tem - já não precisa muita coisa não: a reza, que alimenta o espírito e faz crescer o roçado; desfiar o terço como um exercício pra depois debulhar o milho e o feijão abençoados, recompensa pela fé e devoção; uma cantiga pra virgem em agradecimento à vida, que é longa, tão enormemente proporcional à vontade de vivê-la.

Mas pro menino crescido dessas bandas é bom que se saiba rir e rimar, porque a cacimba seca, o riacho seca e a distante água azul não rega.

O homem labutador daqui sempre tem um amor pra alimentar o coração; é que faz parecer chover sem chuva e até mostra o sorriso desfalcado que põe defeito no beiço e faz voar a farinha, quando há. O homem dessa terra passa a vida correndo atrás dela. Nas costas, a corcunda adquirida da rede, quase sempre, seu único bem até a ida.

O homem da terra de cá não dá semelhança, é ainda da casa dos trinta, mas a cara imita o solo rachado, uma ruma de linhas profundas numa geometria plana e irregular a rodear-lhe os olhos amiudados, a venta e o fosso sem dente.

Esse homem, já disse o poeta, é um forte, mas isso porque se funde à geografia numa espécie de simbiose, em que o homem é a terra e a terra é o homem. Ou seria, o homem é da terra e a terra é do homem? Não sei, só sei que sobrevivem um do outro.

Corpo Estranho

Algo indesejado quer apossar-se de você; fazer parte de sua vida. Se isso acontecer, lute. Se não der pra cortar o mal pela raiz, apare-o bem rente; não permita crescer. Combata. Peça a ajuda de um profissional, se for preciso. Mas o que é tão terrível assim?

Numa grande festa, é o anfitrião a vítima. Com ajuda de um amigo tentam identificar o inimigo e eliminá-lo.

- Esse não, o outro!

- Esse?

- Não, o da esquerda!

- Aqui?

- Aí é direita.

- Esse, então?

- Achou?

- Achei.

- Então tira.

- Não dá.

- Como não dá?

- Tá preso.

- Mexe que sai.

- Já mexi.

- Então?

- Não saiu.

- Puxa.

- Puxar?

- É. Puxar!

- Tá bom, mas vai doer!

- Então deixa.

- Vou deixar.

- Mas, e se ela reclamar?

- Tirando ou não tirando ela reclama. Então vou tirar.

- Tira!

- Perdi de novo!

- Procura.

- Esse?

- Não. O outro!

- Esse?

- Esquerda!

- Aqui?

- Eu disse direita?

- Esse, então?

- Achou?

- Achei.

- Manda ver!

- Tem certeza?

- Tenho.

- E se eu errar?

- Não erra.

- Olha que eu erro!

- Afasta os outros!

- Como?

- Com os dedos, ora!

- Já, mas agora deu pena.

- Como pena?

- É que ele ficou tão sozinho...

- Não vai chorar, vai?

- Claro que não!

- Então corta.

- Lá vai...

- Corta.

- Cortei.

- Ah, cabelinho branco!

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Devolução


Conceição havia feito todo tipo de simpatia para arrumar um marido. Já contava trinta anos e nada. Decidiu fazer uma última tentativa.

― Será a última vez. - disse isso, folheando a revista Guia Astral, na seção do Bidu. Na primeira simpatia, viu escrito em letras graúdas: ESSA É TIRO E QUEDA!

“Corte uma maçã ao meio; retire parte da polpa de um lado e coloque seu pedido de amor; retire a polpa do outro lado e faça uma breve descrição do pretendente. Com uma fita vermelha, amarre as duas partes da maçã, depois jogue-a em água corrente, fazendo uma prece a santo Antônio. Assim a união acontecerá e somente se dissolverá com a morte de um dos dois”.

Em letras miúdas no rodapé estava escrito: “não aceitamos devolução”. Mas ela não lê.

Assim fez, sem muita fé, pois já havia tentado tantas vezes. A mãe também desistira de casar a filha.

Um ano depois, finalmente no altar. Casara-se. Dera certo a simpatia. Arrumara Conceição, um noivo; não somente um noivo, mas o homem de sua vida. As amigas morriam de inveja, buscavam nele um defeito, nem que fosse uma unha mal lixada. Mas nada. Tinha as unhas polidas e bem-feitas. Bancário, tinha já um belo apartamento no Vieiralves, além disso, sem filhos, bonito, enfim, um bom partido.

― Um partidão! - orgulhava-se a mãe.

Conceição, porém, desconhecia, ainda, as delícias do casamento. Receava por não agradar ao marido; ao mesmo tempo, ansiava por sua primeira noite. Sugeriu ela que encenassem uma fábula. Chapeuzinho Vermelho. Ele topou porque precisava quebrar o gelo, estava tenso. Iniciou então.

― Pra que esses olhos grandes? - na verdade eram enormes, mas ele não a quis magoar, por isso dispensou o “tão”.

― São pra admirar você, meu Lobão!

― E essas mãos enormes? - continuou ela.

― Pra pegar você todinha, Ceicinha!

― E esses braços tão fortes? - perguntou Ceiça com voz macia como de quem anuncia o próximo vôo.

― São pra te segurar, Pepeuzinho!

Agora, ele de cuecas e ela de lingerie. Loucos de desejo continuam a brincadeira.

― Essas coxas tão musculosas, meu Lobo!

― São pra te apoiar, Pepeuzinho!

Finalmente, despido o marido. Ela olha aquele objeto de seu mais íntimo desejo e pensa:

― Será que aceitam devolução, meu Lobinho?

Acordo de cavalheiros

― Quanto quer o senhor para assentar vinte e dois metros de chão de cerâmica, azulejar dois metros de parede e pôr uma porta no quarto de minha criança?

― É grande?

― Isso, o senhor é quem diz; já lhe dei as medidas.

― Posso ver?

― Pode.

― Tem que pôr rodapé? - disse isso com movimento de coçar o queixo com os dedos ajuntados, já com olhos diminuídos como quem calcula.

― É serviço completo. Vamos homem, diga! Faz ou não faz? Se faz diga o preço.

― Tem que começar hoje?

― Se demorar muito, anoitece.

― É 250; mas só amanhã. Tenho que me acostumar com a idéia...

― Que idéia?

― Do trabalho.

― Pensei que precisasse; o senhor, seu Manoel, tem muitos filhos e está sempre em casa...

― O que é agora, por acaso está entrando na minha particularidade? Já vou dizendo que num gosto de intimidade.

― Desculpe, é que...

― Bom, amanhã, oito horas.

Pensei, depois do acordo verbal, que pudesse me arrepender; o homem não parecia afeito ao trabalho, mas apontaram-no como bom nessa arte. No acabamento da obra não havia outro melhor. Meu próprio irmão o avalizou.

Primeiro dia compareceu. Não às oito, mas às dez. Fiquei ressabiado e pus-me a observá-lo; parecia ágil e habilidoso, cheio de minúcias. O trabalho era bom. Pedi que lhe servissem um copo de bananada; não que tivesse contratado com lanche e refeição; mas era para mantê-lo animado e continuasse bem o trabalho. Dava-lhe apenas lanche, quase sempre café, leite e pão; o almoço era por sua conta. Ao final do dia, o quarto do menino estava terminado, faltando a porta. O pedreiro saiu com promessa de dia seguinte, às oito. Garantiu. Antes pediu 50 de adiantamento. Dei-lhe porque achei justo, tinha cumprido um quinto do serviço, recebia pelo já feito.

Em segundo dia, posta a porta, saía mais cedo seu Manoel. Não pediu nenhum, apenas disse “até amanhã”, com modos de seriedade. À noite adiantada, mais ou menos às onze e meia, batiam à porta. Fui ver quem era. O próprio, pedindo mais um pouco para o remédio da menorzinha que ardia em febre. Dei-lhe 20. Não me pareceu satisfeito. Éramos dois. Em minha conta achava muito, era caso de 15, pois chegara às dez, saíra ao meio-dia, retornando às três, do almoço. Perguntei-lhe o porquê do adiantado da hora, disse-me distrair-se. Terminou o expediente às quatro e meia.

Amanhecendo, sem aviso, não comparecera ao posto. Achei que por causa da filha. Mas não, disse-me doer-lhe as juntas.

Combinamos o prazo de seis dias, com promessa de serviço terminado no sábado, e deveria eu ficar descansado. Não inspirava preocupação, pois contava ainda muito tempo para o final do prazo. Disse-me.

Era quinta, o serviço tinha um dia de atraso. Achei melhor confiar, mesmo que com péssima intuição. À hora de costume, ateu-se à instalação das cerâmicas inteiras, ficando os ajustes para o final. Era inteligente o pedreiro. E porque não dizer “artista”. Sendo rápida essa parte, dava a impressão de serviço adiantado. Ao final do dia, quase toda a sala, cozinha e quarto tinham o chão recoberto, a combinar com as paredes que mandara pintar recentemente. A casa tinha agora um ar rústico, como imaginei. Um belo desenho formara-se quando pronto o quebra-cabeça. Justapostos, linhas e desenhos em cores davam a casa bela vista.

Na sexta não viera. No sábado, disse-me ter ido buscar a mãe no porto, vinha no motor das oito. Aproveitei para puxar assunto. Perguntei de onde era. – Eirunepé. -Respondeu sem esticar a resposta. Não insisti.

O taberneiro advertira-me sobre a conduta do empregado.

― É preguiçoso. - disse-me. - Quando ganha algum, entra na toca pra hibernar, só sai quando termina o último centavo.

― O senhor não se envergonha? Deveria prestar atenção à sua própria vida.

― Só queria ajudar, mas é com o senhor. Não está mais aqui quem falou.

Estava enganado seu Antero. Dia seguinte, seu Manoel pôs-se a medir e a cortar cerâmica para os ajustes das extremidades e do rodapé. Levou o dia inteiro nisso e mais o outro. Um traço de massa, uma porção assentada. Foi assim que se deu este último dia. Tinha-lhe pago mais da metade do acertado; ora para comprar uma janta, ora o gás que faltava. Sua cara triste causava-me imenso dó. A menina, graças a Deus, não mais adoecera, aliás, a febre foi coisa pouca, garganta inflamada. Estava lá, à frente da casa, saltitante e feliz como toda criança naquela idade. Nunca a vi tão sã. Na verdade, não acreditava que alguém que mora na frente da sua casa e está lhe prestando um serviço, em acordo de confiança, tivesse má intenção, como queria que pensasse seu Antero. Afinal, eu saberia. Entre cavalheiros não é necessário papéis. Reconhecia um homem honesto quando via um.

Faltava apenas aplicar o rejunte e pôr o azulejo da pia. Seu Manoel chegara finalmente às oito. Não descrevo o alívio porque palavras não seriam suficientes. Disse que era serviço pra um dia, só iria buscar a maquita emprestada no dia anterior, mas pediu que pagasse o restante, pois deveria entregar o dinheiro a um cobrador. Era um conhecido, seu José, tinha vendido uma geladeira usada e vinha buscar o combinado. Esperava-lhe ao portão. Dei-lhe o dinheiro.

Conto-lhes apenas que trago os azulejos e o rejunte guardados no depósito. Ainda não me recuperei do golpe. Vejo-o todos os dias, e ele, indiferente, faz de conta que não me vê. Se ao menos se escondesse ou baixasse a cabeça, envergonhado. Fiquei com sua velha colher de pedreiro, o que me traz algum consolo. Pensei em devolver-lhe a ferramenta, afinal, são seis filhos e o sétimo a caminho. Não digo mais nada porque me envergonho de minha ingenuidade, mas, sem medo de errar afirmo: nem todos os pedreiros são iguais, porém, em caso de dúvida, confie mais no taberneiro do que no irmão.